AÇORDAS OU SOPAS DE PÃO
(in "Açordas, Migas e Conversas", Âncora Editora,
2017)
Para muitos alentejanos, açordas e sopas de pão são uma e a
mesma coisa. Aprendemos que a palavra açorda radica no árabe ath-thurda e que designa
um cozinhado de pão embebido num caldo bem quente. Aliás, a palavra caldo
pressupõe que a confecção esteja quente, pois radica no latim caldus, que
significa isso mesmo. Por outro lado, a palavra sopa, com origem no germânico
Suppa, chegou-nos através do francês soupe (alimento líquido, geralmente
servido no início da refeição).
Diga-se, a propósito, que entre nós, a palavra sopa também
refere cada um dos pedaços de pão, cortados à faca ou partidos à mão, quer os
que já estão embebidos no caldo, quer os que ainda estão em vias de o ser. É
neste último contexto que “molhamos a sopa” ou “cortamos as sopas” para a
açorda. A verdade é que cada um usa os nomes que aprendeu e de que mais gosta.
A culinária não tem regras científicas de sistemática e de
nomenclatura a respeitar. Segue, sim, os caminhos da vivência, da imaginação e,
também, em certa medida, os da arte, pois não é raro ouvir falar da arte na
cozinha.
Na literatura portuguesa, o termo açorda surgiu, crê-se que
pela primeira vez, na “Farsa dos Almocreves”, de Gil Vicente (c. 1465-c.1536).
Diz ele, aí:
“Tendes uma voz tão gorda / Que parece alifante / Depois de
farto de açorda”.
Na douta opinião de Alfredo Saramago (1938-2008) em “Para
uma História da Alimentação no Alentejo”, Assírio & Alvim, 1997, a nossa
açorda atravessou os cinco séculos de ocupação romana, tendo sido os árabes
que, durante outros cinco séculos de presença, a fixaram e lhe deram a
importância que teve entre eles e ainda tem entre nós. Vulgarizada entre as
famílias alentejanas, não se afasta da tharid dos invasores árabes, ganhando
raízes nas nossas terras do Sul, Antre Tejo e Odiana (entre Tejo e Guadiana).
Confecção frugal de pedaços de pão mergulhados num caldo quente, aromatizado
com ervas e enriquecido com azeite, a tharid, cujo nome alude ao acto de cortar
ou arrancar pedaços de pão, terá sido muito elogiada por Maomé (Saramago,
1997). A açorda é, pois, uma herança da presença muçulmana neste Garb al
Andaluz, dos séculos VII a XIII.
Não há uma, mas muitas receitas de açordas no Alentejo,
todas elas com uma característica comum, a de fatias ou pedaços de pão
mergulhados (ensopados) num qualquer caldo quente, com mais ou menos gordura.
São tantas, a ponto de, em Portel, ter lugar o “Congresso das Açordas”, que já
cumpriu mais de uma dezena de encontros. As receitas são muitas e mudam
de região para região e, mesmo, de família para família.
Fazer sopas de pão deve ter começado por ser um acto de
elementar economia, bem evidente no Alentejo, onde, ao contrário do norte do país,
o trigo foi e continua a ser o essencial na componente amilácea dos seus
naturais. Fazer sopas de pão foi um expediente engenhoso e fácil de aproveitar
integralmente o pão endurecido de muitos dias, onde já se não metia o dente. Só
molhado!
Amassar e cozer o pão era tarefa, no mínimo, semanal, via de
regra ao Sábado e, assim, o pão que durasse até nova amassadura, só bem
embebido no caldo ou, então, comido à navalha e em lasquinhas bem delgadas.
No Alentejo, o pão de trigo sempre engrossou e deu calorias
a uma qualquer frugal confecção caldosa, fazendo dela, muitas vezes, uma
refeição completa. Avolumar com pão os magros cozinhados, numa prática
corrente, foi um nunca mais acabar de experiências (migas, ensopados, açordas,
“caspachos” e outras sopas) em que as mais bem sucedidas estão hoje,
convenientemente apresentadas, na mesa de alguns restaurantes que descobriram o
seu grande valor em termos de turismo gastronómico, face a uma clientela
crescente em procura deste e de outros tipos de bens culturais.
As açordas dos mais carenciados raiavam a frugalidade. Eram
as “açordas de mão no bolso”, como já escrevi em “…Com Poejos e Outras Ervas”,
(Âncora Editora, 2002) que, não tendo conduto, só precisam da mão que leva a
colher à boca. Eram as “açordas peladas, não fazem mal nem bem, é só pão e
água... caem nas calças e não põem nódoas”, tal a míngua do azeite, escreveu
Falcato Alves, em “Os Comeres dos Ganhões” (Campo de Letras, 1994). Era assim
nos campos do Alentejo que conheci no meu tempo de adolescente. Ao invés, as
açordas dos que podiam comê-las, tinham grande valor nutritivo e requintado
paladar. Convenientemente untadas de bom azeite, eram enriquecidas com
bacalhau, pescada cozida, ameijoas, sardinhas assadas ou fritas e ovos cozidos
ou escalfados e, até, nalgumas famílias, com figos frescos, no tempo deles.
Com a real melhoria das condições de vida, de há mais de
quatro décadas, a açorda alentejana evoluiu de alimento de subsistência, muitas
vezes em períodos de fome, para um prato de referência. A “sopa alentejana” que
se serve em Lisboa é uma pretensa e imperfeita imitação da nossa açorda. Feita
com pão de carcaça (papo seco) que, de imediato, a deixa espapaçada,
acompanhada de ovo escalfado, é para nós um desconsolo.
Finalista no concurso “7 Maravilhas da Gastronomia
Portuguesa”, em 2011, a açorda alentejana corresponde, no essencial, como se
disse atrás, à ath thurda, em que as ervas aromáticas são o coentro e/ou poejo.
À falta destas ervas ou misturado com elas, há quem use pedacinhos de pimento verde
bem pisados, havendo, ainda, quem, em vez de coentros ou poejos, a faça com
orégãos frescos, acabados de colher.
Ao contrário da maioria das sopas, a açorda alentejana não
é, praticamente, cozinhada. Ao lume só vai a água, para ferver ou para cozer o
peixe, operação relativamente rápida e, por isso, importante em termos de
deixar tempo livre às mães de muitos filhos e “donas de casa”, como era a
minha.
No século XIII, no Alentejo, na Extremadura espanhola e na
Andaluzia, comiam-se umas sopas de pão, por vezes enriquecidas com carnes de
frango ou de borrego, a que se dava o nome de “pana- das”, das quais, o
gastrónomo, filósofo e poeta de Múrcia, Ibn Razin al-Tujibi (1227-1293),
descreveu vinte e cinco receitas. Mais tarde, no século XVII, o cozinheiro da
Casa Real de Portugal, Domingos Rodrigues (1637-1719), no seu livro “A Arte de
Cozinha”, editado em 1680, diz que “diferentes dos caldos, havia sopas
cozinhadas com pão”. Já nesta obra, a palavra sopa também refere cada um dos
pedaços de pão, cortados à faca ou partidos à mão, quer os que já estão
embebidos no caldo, quer os que ainda estão em vias de o ser. A expressão sopas
de pão parece, pois, ser uma redundância, mas evita possíveis confusões. Ao
dizer sopas (no plural) disto ou daquilo, a minha mãe referia-se a um só prato,
se este fosse à base de pão. Era o caso, entre outras, das sopas de cação ou
das de beldroegas. Mas se delas não fizesse parte o pão, falava dos diferentes
tipos de sopa (no singular), como por exemplo, a sopa de legumes, a sopa de puré
de feijão, a canja, o caldo verde o creme de cenouras e muitas outras. Quando,
por exemplo, ela dizia “sopa de grão com espinafres”, ficava-se a saber que se
tratava de uma confecção caldosa, de puré de grão com os ditos espinafres, para
comer à colher, à qual se seguiria um segundo prato de carne ou de peixe. Mas
se ela dissesse “sopas de tomate”, isso indicava que a refeição iria ter um
único prato (“assarias”, como ainda se dizia em Portel, em começos do século
XX) de sopas de pão, acompanhadas com ovos escalfados e com os pedaços da carne
e dos enchidos dos quais se havia tirado o pingo necessário à confecção.
À mesa das famílias alentejanas, as sopas de pão são normal-
mente comidas com colher e garfo. A colher leva à boca e o garfo ajuda, quer no
ajeitar do pedaço de pão na dita, quer na divisão dos condutos. É o contrário
do que se faz nos pratos de carne ou de peixe, onde é o garfo que leva à boca e
é a faca que corta e ajuda.
Para nós, alentejanos, as migas (do latim, mica, que
significa migalha, partícula) são um alimento à base de fatias de pão de trigo
embebidas em água bem quente e, a seguir, esmigalhadas e amassadas, untadas com
o “pingo” de fritar carne de porco ou com azeite. Este tipo de confecção, mas
mais espapaçado, é aquele que, em Lisboa e noutras regiões do país, se chama
“açorda”. Cozinhadas a partir de múltiplas receitas, variando de lugar para
lugar, as “açordas de marisco”, as boas as más, que percorrem o litoral, do
Minho ao Algarve, são, na realidade, migas. Dando satisfação a numerosos
apreciadores, temos, ainda a “açorda com ovas de sável”, que se faz no
Ribatejo, confecção com lugar cimeiro na gastronomia portuguesa. Umas e outras
estão mais de acordo com a nossa ideia de migas, incluindo as de batata, também
elas esmigalhadas e amassadas.
Consciente desta realidade cultural dos alentejanos, o poeta
João de Vasconcelos e Sá, avô do nosso fadista Pinto Basto, cantou, na revista
musical, “Palhas e Moinhas”, levada à cena, em 1939, no teatro Garcia de
Resende, em Évora (a que eu assisti), a diferença entre os usos destas duas
palavras no Alentejo e fora dele:
“Terra de grandes barrigas
onde só há gente gorda.
Às sopas chamam açorda,
à açorda chamam-lhe migas.
Professor Antonio Galopim de Carvalho
António Galopim de Carvalho